quarta-feira, 9 de novembro de 2016

A HISTÓRIA DE NÓS DOIS (DE SOLIDÃO E FORTALEZA)

“Que nunca te arrependas pelo amor dado!
Faz parte da vida arriscar-se por um sonho...
Porque se não fosse assim, nunca teríamos sonhado!
Mas, antes de tudo, que você saiba que tem aliado.
Ele se chama TEMPO... seu melhor amigo.
Só ele pode dar todas as certezas do amanhã...
A certeza que... realmente você amou.
A certeza que... realmente você foi amada."


(Trecho de poesia de Carlos Drumond de Andrade)

   Esse trecho vem realmente demonstrar que nunca devemos nos arrepender de nada em nossa vida, pois só vivemos aquilo que há para ser vivido, e intensamente, seja bom ou ruim, faz parte das escolhas que fazemos e até as lembranças nos fortalecem.

                                                   
                                                    HISTÓRIA DE NÓS DOIS

                                                                   I
        
“O BOM DO MOMENTO É PODER ETERNIZÁ-LO EM NOSSA MEMÓRIA.”
          
          Primeiro de agosto de 1980; início de aulas do 2º. Semestre, do Colégio XI de Agosto, 3º. Ano Colegial (Como era chamado na época) – Noturno.
          Carmem acabara de dar á luz havia apenas um mês e vinte dias; durante as férias de julho restabeleceu-se da cirurgia e retornou às aulas para terminar o curso, contava na época 26 anos.
          Encontrava-se desiludida, insatisfeita sentia um vazio enorme no seu relacionamento e distanciava-se cada vez mais de seu companheiro, Hiroshi era um bom homem, mas Carmem queria mais, queria sentir a emoção de amar, ser amada e viver intensamente esse amor, o qual acreditava sinceramente pudesse existir.
    Alunos novos, professores novos, Carmem sentou-se como de costume ao fundo da sala e arrumava seu material, quando na porta apareceu um rapaz que trazia nos lábios um sorriso de anjo e nesse mesmo instante o coração dela disparou e lá em seus pensamentos achou-o maravilhoso.
   Ele entrou, cumprimentou a todos e sentou-se ao lado dela. 
   Seu nome era Yuri, disse a ela sorrindo.
   Lindo nome, pensou ela ... lindo sorriso ... lindo tudo ...
   Trocaram algumas palavras e ficaram em silêncio, começava a aula.
   Por mais incomum que pareça, Carmem não conseguiu dormir, a imagem do rapaz e do seu sorriso encantador não saia de sua mente.
   Ela trabalhava na época em uma Secretaria de Estado e apesar de jovem ainda, já tinha uns seis anos de casada e uma filha linda de cinco anos, além do bebê que acabara de chegar ao mundo e apesar de ser muito bem recebido e muito amado, também foi uma tentativa de salvar aquele casamento que já agonizava. E a rotina continuou.
     Trabalho, casa, amamentação, momento de carinho de mãe e logo a seguir colégio, era imprescindível ter uma formação, preencher a vida.
   Carmem teve uma criação rígida, família de militares, colégio de freiras, mimada em algumas coisas e  massacrada em outras; até por isso na primeira oportunidade que se apresentou, na ânsia de libertar-se da relação tão conturbada com a mãe, resolveu casar-se, já de antemão sabendo que não havia amor suficiente para dar suporte ao casamento que foi realizado com todas as formalidades que a situação requeria.
   Essa convivência entediante foi se arrastando até que ela percebeu o lindo colega do colégio, o rapaz do sorriso encantador, sempre muito gentil e atencioso, que tecia elogios à roupa, ao cabelo, ao perfume, à cor dos olhos... Carmem era sim uma linda mulher, e nem de longe seu corpo demonstrava que havia tido um filho há tão pouco tempo.

   O grupo de estudos discutia sobre tudo, viviam sorrindo e por incrível que pareça não falavam sobre casa, família, e o tempo passava rapidamente.
   Num desses dias, em meio à correria natural, ela antes do inicio da aula precisava deixar sua irmã Isabel em seu apartamento que ficava mais ou menos próximo ao colégio, e ao passar por ali, avistou seu anjo sorridente tomando um café na lanchonete onde se reuniam os amigos nos intervalos das aulas.
   Carmem estacionou e levou Isabel para um café e apresentou-lhe Yuri, convidando-o para ir com ela levar sua irmã à casa, ainda tinham algum tempo disponível antes do início das aulas.
   Até este dia, seus olhares se encontravam, o brilho dos olhos estava presente, estavam sempre próximos, falavam sobre todos os assuntos, e no retorno do apartamento de Isabel, beijaram-se como nunca haviam beijado e sentiram o que nunca haviam sentido ... sem sombra de dúvidas , estavam completamente apaixonados.
   Passado o primeiro impacto, Carmem recobrando a sanidade olhou- o bem dentro dos olhos e perguntou:
   Você sabia que eu sou casada?
   Ele perplexo, em desespero perdendo a cor dos lábios respondeu-lhe:
   Por que você nunca me disse, só pode estar brincando!
   Completamente atordoada ela tentou explicar-se dizendo:
   Imaginei que você soubesse, todos os nossos amigos sabem, mas o que havíamos esquecido é que a maioria deles eram alunos antigos do colégio, e ele havia se transferido recentemente, portanto não poderia saber.
   Foram assistir á aula com certa tristeza com um receio enorme de que momentos mágicos iguais aquele nunca mais acontecessem entre eles.
   Realmente, ela já totalmente envolvida, apaixonada e ele aflito, sentindo-se culpado, mas também apaixonado, tentando afastar-se, manter-se frio, indiferente.
   Ela sofria , se sentia muito infeliz e tentava não deixar transparecer dentro da sua casa o turbilhão em que se encontrava a sua alma.
   Para sua sorte seu companheiro (já não mais tão companheiro), chegava sempre muito tarde do trabalho, invariavelmente ficava com os amigos no fim da tarde conversando e bebendo discutindo os negócios, e não havia tempo para perguntas, pois o cansaço do dia tão corrido, os deixava prostrados, e ela agradecia a Deus, por poder preservar o seu segredo , o seu sentimento e o seu sofrimento naqueles dias.
   Os amigos sentiam-se incomodados em nos ver tão tristes e distantes.
   Jânio, Kleber “Boiadeiro” e Yolanda, torciam para que as coisas se ajeitassem, mas a decisão cabia aos dois.
    Carmem escreveu uma linda carta falando sobre os dois, de tudo o que sentiam e em como se completavam sem nunca terem se  tocado.
   Implorou ao amigo Jânio, que a entregasse e o menino encantador, depois de muito relutar, de travar uma verdadeira batalha com seus princípios, correu ao seu encontro, beijou-a ardentemente e naquele instante já sabiam que não poderiam viver um sem o outro.

   E agora...

   Já sabiam que não iriam conseguir ficar longe, mas como ficar juntos, como vencer o ciúme de ver e saber que todos os dias ela tinha que voltar à casa, às suas obrigações de mãe, de dona de casa, e de esposa ainda...
   Seu bebê, lindo, ainda estava em fase de amamentação e por causa do trabalho logo deixaria de ter esse carinho.
   E começaram a viver a sua história de amor, sofrida para os dois.
   Carmem começou a perceber que não tinha estrutura para levar uma vida dupla, mas deveria sair do casamento devagar sem destruir demais as pessoas que de alguma forma dependiam dela, seus filhos e Hiroshi, que apesar dos apesares também a amava muito, ele não queria de forma alguma a separação, mas até então não sabia da existência de Yuri na vida dela.
   Yuri foi chamado a trabalhar para o Estado, o que tornava a ambos funcionários públicos.
   As crianças ficavam na casa de seus pais enquanto trabalhava e à noite quem chegasse primeiro, os levava para casa e era essa a rotina.
   Levantava-se sempre bem, passava na casa de Yuri e o levava até a Secretaria de onde se dirigia ao seu local de trabalho  que era próximo, o que significava que o dia juntos começava bem cedo, e ligavam-se durante o dia , e iam embora juntos, e tinham aula à noite, e onde quer que ela fosse quando não estavam juntos, bastava olhar ao redor para ver e sentir Yuri sempre ali por perto, e apesar de estar cada vez mais distante de Hiroshi e de não mais se relacionarem  intimamente, ele, ou fingia não saber, ou realmente não se dava conta de que ela havia mudado e que aquela vida a dois já não fazia o menor sentido.
   Terminaram o colégio e prestaram vestibular para a única faculdade que poderiam pagar naquela época, ela prestou Psicologia  , Yuri prestou Direito e passaram.

   Sempre... Sempre juntos, depois do trabalho dirigiam-se à faculdade às vezes de carro , outras vezes de trem, o famoso “trem dos estudantes” que saia ,ou melhor, ainda sai da estação Brás e vai até a Estação Estudantes (Mogi das Cruzes) , onde Carmem ficava no Campus e Yuri ainda caminhava com os amigos até o Centro onde ficava o prédio do Direito. Era esse o único momento do dia em que ficavam de certa forma, distantes, mas era um momento breve e o reencontro ao final da aula, no vagão do trem que os trazia de volta à São Paulo era magnífico, tinham inúmeros amigos que vinham  no vagão dos estudantes de Direito que haviam deliberadamente escolhido por ser o mais animado, todos cantavam os sucessos do momento e a viagem se tornava mais rápida e mais feliz.
   Parece que ainda ecoam os risos e o canto daqueles dias: “Viver e não ter a vergonha de ser feliz...cantar e cantar e cantar a beleza de ser um eterno aprendiz...eu fico com a pureza da resposta das crianças ... é a vida, é bonita e é bonita!!!”
   Chegavam no terminal onde ficava estacionado carro de Carmem e dali os dois dirigiam-se para a casa dele , onde muito a contragosto e entre muitos beijos despediam-se até a manhã seguinte.
  Era uma situação desconfortável.
   Muitas vezes Carmem chegava pegava as crianças e Hiroshi ainda não havia chego. A cada dia chegava mais tarde.
   Ela não se importava, melhor assim, se estivesse dormindo não havia conversa, confronto, pois a cada dia ficava mais difícil olhá-lo e manter a aparência de casal perfeito e feliz.
   Os fins de semana eram cruéis, e todos os dias Carmem agradecia a maravilhosa ideia da invenção do telefone, pois se tivesse que ficar sem ao menos ouvir a voz do homem de sua vida, sufocava, e o mesmo se dava com ele.
   E o tempo foi passando, Carmem tinha muita cumplicidade com seu pai, um homem sensato, calmo, que ao ouví-la entendeu o coração de sua filha, mas ficou preocupado e achava que ela devia arranjar uma solução pacífica para o fim daquela relação.
   As crianças não deveriam sofrer as consequências, mas não era assim tão fácil , todo fim seja lá do que for não traz a mesma alegria do inicio, assemelha-se a um  temporal no meio da noite escura.
   Hiroshi era uma pessoa importante na época na empresa em que trabalhava, estava lá há muitos anos, havia entrado ainda menino e cresceu profissionalmente, era descendente de nipônicos, e atolado em preconceitos de todos os tipos.
   Separação entre eles não existia , assim como casamento fora da origem também não era bem visto, e Carmem não era aceita na família por ser “gaidjin” como eles costumam chamar os estrangeiros de modo pejorativo, e ela pouco se importava.
   Seus pensamentos, sua vida, seu desejo, seu sonho era Yuri.
Nos fins de semana que eram realmente o seu tormento Carmem recebia como ninguém em sua casa ,  diretores e gerentes da empresa de Hiroshi, onde ela também havia trabalhado antes do casamento, administrava a casa , fazia as compras, mantinha as crianças limpas , arrumadas, era uma mulher de dar orgulho a qualquer um, além de trabalhar e estudar.  Haviam facilidades como, empregada, carro e claro dinheiro para bancar o padrão de vida que Hiroshi gostava de levar.


   E tudo transcorria maravilhosamente.  Carmem e Yuri durante a semana saiam, (ele alugou um quarto, próximo à sua casa , onde os dois ficavam juntos ,faziam amor e ele a esperava muitas vezes com o jantar prontinho e a tratava como uma princesa) tinham algumas faltas que podiam ser abonadas, faltavam a algumas aulas e nesses horários , iam á praia e não havia lugar nessa cidade que não tivessem ido , Taubaté, Aparecida do Norte , Boracéia, Barra do Una, Mairiporã, Atibaia, Arujá, e em todas elas faziam um amor maravilhoso que se aperfeiçoava a cada dia por que era amor , não era sexo, a família de    Carmem  ficava entre a cruz e a espada , por um lado não podiam abandoná-la correndo o risco de ser descoberta por Hiroshi e por outro lado não queriam que ele sofresse pois afinal ele era um bom pai, um bom marido, uma boa pessoa.
   Ficaram do lado da filha e rezavam para que os dois não fossem pegos, sentiam-se mal com tal procedimento e o pai de Carmem, sempre lhe dizia que ninguém pode mandar no próprio coração porém que uma atitude teria que ser tomada e rápido, o que não podia era deixar as coisas como estavam.
   Enquanto isso, faziam amor... e de novo... e de novo...
   Hiroshi já havia se habituado às dores de cabeça, ao sono profundo, mas não dava mostras de desconfiar de absolutamente nada.
Até que certo dia chegou do trabalho com uma grande novidade, tomara uma decisão e estava apenas comunicando a Carmem que na segunda feira estariam todos morando em Sorocaba, onde ele havia aberto uma agencia de automóveis e financiamentos de crédito pessoal, com o dinheiro de indenização pelos dezesseis anos de trabalho , do qual havia pedido demissão.
   Ora, ora, Carmem estupefata olho-o e perguntou : todos quem?
   E sem querer Hiroshi havia trazido a possibilidade que ela tanto havia esperado de colocar um fim naquele casamento.
   _ Todos! Você, nossos filhos!
   Carmem respondeu-lhe :
   _ Então você acredita mesmo que eu vou deixar meu trabalho, meus estudos para acompanhá-lo?
   _E como é que você toma a decisão de demitir-se, abre uma empresa e só então vem me comunicar?
   _ E os anos todos em que o ajudei para que chegasse onde chegou?
   O mínimo seria me avisar antes, conversarmos, mas enfim...
    Bem, disse Hiroshi, agora está feito e vamos sim , na segunda feira.
   A partir desse momento, muitas coisas se modificaram, logicamente ela não foi e muito menos seus filhos e Hiroshi foi sozinho .
   Ia na segunda feira pela manhã e voltava no sábado à tarde, depois do expediente , e chegava invariavelmente bêbado, cheio de ciúme e muito feroz.
   Indagava por onde ela andou, com quem estava saindo, e a ameaçava dizendo que se soubesse que havia outro homem ele tiraria dela os seus filhos.
    Era um inferno ter que lidar com aquela situação e sua repulsa por ele aumentava.
   Mudou-se para a casa de seus pais, e Hiroshi a quem pediu a separação relutava em aceitar e a forma que encontrou para coagi-la foi o dinheiro, que a esta altura tornou-se para ela escasso, pois seu salário era incompatível com o padrão de vida que estavam acostumados a ter.
   Yuri a amava muito, ela sempre soube, morria de ciúme dela mas apesar de seu desespero era sempre paciente esperando o desfecho daquele impasse que era o seu casamento, até porque era muito jovem, ganhava pouco e apesar da boa vontade jamais iria conseguir mantê-la e a seus filhos, pelo menos não naquele momento, mas tinham planos.
   Hiroshi, por sua vez, sabia que começava a faltar de um tudo, e ao chegar deixava sua carteira transbordando de dinheiro sobre a mesa, realmente uma quantia imensa, digamos a féria do dia da financiadora exposta para chamar a sua atenção e fazer com que  movida pela necessidade ela voltasse para ele.
   Sabia muito bem como chantagear e perguntava à filha pequena:
   Sua mãe está precisando de alguma coisa?
   A menina que também tinha seu orgulho, respondia: Não papai, não precisamos de nada!!!
   Mesmo diante de tantas dificuldades, o amor  a paixão dos dois não arrefecia, Yuri era atencioso com as crianças , brincava com elas, e era uma pessoa alegre sempre sorrindo , e sempre dizendo: fica calma , as coisas vão melhorar , havemos de dar um jeito.
   Carmem não sabia se ele acreditava mesmo nisso ou se falava para acalmá-la.
   Continuavam separados e Hiroshi, se negava a falar em separação, não admitia tal ideia.
   Carmem deixou a Faculdade , arranjou um emprego extra e nos fins de semana era consultora de beleza de uma empresa em que os produtos eram fantásticos , mas as reuniões que eram comuns naquela época aconteciam em lugares bem distantes,  em bairros bem afastados.
   Certa vez estando desprovida de dinheiro para o combustível, aproveitou a ida de uma promotora de outro produto para a mesma localidade onde ela deveria efetuar a sua reunião, e foram juntas , no carro da amiga, Carmem colocou sua mala de reuniões, os filhos no banco de trás, e lá se foram, as crianças ficavam quietinhas até que ela terminasse seu trabalho. Sempre foram filhos maravilhosos.
   Ao retornar, ela que não havia ingerido nenhum alimento nesse dia, pegou uma maçã, uma faca, sentou-se na escada de sua casa e começou a comer devagar, encontrava-se exausta até para isso. No entanto Hiroshi chegou, era sábado à tarde, e um tanto alcoolizado sentou-se ao seu lado e começou a fazer aquele jogo de terror do onde você foi, com quem você estava, e vou tirar as crianças de você e Carmem que até então ouvia calada, engasgou-se com um pedaço de maçã, a ponto de ficar sem ar, ao recobrar-se perdeu a noção do que estava fazendo e com a faca que tinha nas mãos partiu para cima de Hiroshi que desviou-se da faca que atingiu a parede que Carmem, fora de si, esfaqueou inúmeras vezes, formando um buraco imenso no concreto, foi preciso que a chamassem à realidade para que não continuasse com aquilo, seus pais vieram em seu socorro.
   A partir daquele momento o pai de Carmem interferiu na situação obrigando Hiroshi a aceitar a separação e comparecer ao advogado que obviamente ela pagaria.
   Enquanto corria esse processo, ela já não tinha mais nada de seu, mas tinha seu amor, e estavam juntos,  nada mais importava, todos os outros obstáculos , seriam superados.
   Bem nesse período as coisas pioraram financeiramente e ela já não conseguia mais suprir as necessidades básicas de seus filhos, e Hiroshi sempre a coagindo com tanto dinheiro.
   Carmem depois de muito relutar, tomou a decisão mais dolorida de toda a sua vida, acabaria com  aquele inferno e não veria mais seus filhos praticamente sem terem o que comer.
   Iria embora com Hiroshi, seria a sua destruição mas a salvação das crianças.
   Chorava dia e noite, ela e Yuri que não se conformava, e ela implorava que ele esperasse por ela , que assim que fosse possível, ela voltaria , nunca deixaria Hiroshi tocá-la novamente pois seu corpo, sua mente e sua alma eram dele para sempre.
   Com a face deformada de tanto chorar por dias seguidos, Carmem colocou os filhos no banco de trás de seu carro ,seu único bem e só não dispôs dele também porque era seu instrumento de trabalho, pois a casa  Hiroshi já havia vendido alegando que não iria deixar uma casa para que ela levasse outro homem e deixou seus próprios filhos sem esse bem tão valioso.
   Nesse momento pela Rodovia Castelo Branco morria um pedaço de Carmem e no rádio tocava Eclipse of the Hearth , e ela chorava, e chorou por todo o tempo que lá esteve dia e noite, tempo esse que durou apenas três dias.
   Alojada em um apartamento em frente ao Shopping, mobiliado dentro do padrão que Carmem sempre apreciou, ela não apenas não conseguia ver nada disso como não parava de chorar sempre abraçada aos seus filhos a quem não deixou nem por um único segundo e no terceiro dia em que lá se encontrava e cumprindo a promessa de não se deixar tocar, recebeu para o almoço que teve que improvisar ainda com o rosto todo inchado um auditor que veio da Financeira de São Paulo,fazer uma vistoria nas finanças da empresa.
   Almoçaram e retornaram ao trabalho. No final da tarde Hiroshi demorou muito a voltar e quando chegou parecia transtornado, algo havia acontecido e Clarice manteve-se em silêncio. Muito abatido, pediu que ela deixasse as crianças no quarto pois ele tinha algo muito importante para dizer e pelo seu semblante parecia realmente grave.
   Carmem fez o que ele lhe pediu e retornou à sala onde  aos prantos ele contou-lhe que o auditor havia encontrado um rombo de alguns milhares de reais e que esse dinheiro havia sido desviado por ele e que teria que devolvê-lo à empresa até o dia seguinte, caso contrário iria ser preso por haver desfalcado a empresa.
   Carmem não o amava, mas não queria o seu mal, afinal era o pai dos seus filhos e sempre fora um homem íntegro.
   Não pensou duas vezes.
  Colocou roupas, e tudo o que pode em seu carro, as crianças e Hiroshi no banco de trás e veio à toda pela estrada, precisava fazer algo para evitar que algo pior acontecesse.
   Saiu de lá por volta das vinte e uma horas e ao chegar em São Paulo, deixou as crianças com seus pais, contou-lhes tudo o que havia ocorrido , e saiu em busca do dinheiro que precisava ser reposto, rodou a noite toda pela casa de todos os parentes de que pode lembrar-se , que tinham pouco mas abriam mão para ajudar e ao chegar a manhã seguinte , ao abrir a primeira agencia de automóveis da cidade Carmem parou e vendeu o seu carro pois o dinheiro arrecadado era muito inferior ao que teria que ser devolvido.
   Estava feito.
  Voltou à Sorocaba, e ao final da tarde estava tudo resolvido, passou no apartamento desmontou todos os móveis, alugou um carreto e trouxe tudo para as casa de seus pais, inclusive o carro de Hiroshi que estava alienado, e ela continuou pagando as prestações.
  Como era de se esperar, Hiroshi entrou em depressão profunda, não trabalhava mais, só chorava, não saia da cama, e Carmem voltou às suas atividades, e trabalhava muito, tomou para si o carro e correu em busca de Yuri, que não acreditava ao vê-la.
   Eles se amavam muito e apesar de ter sofrido demais com essa breve ausência Yuri ao ouvi-la voltou para seus braços, e amaram-se como dois pagãos.
   Ela saia, chegava, e Hiroshi não a incomodava mais, mas a presença dele tão prostrada começou a incomodá-la profundamente, pois além de ter as crianças para manter e a si mesma, ainda recebia telefonemas ameaçadores, pois nesse período em que esteve fora Hiroshi gastou em jogo, mulheres , motéis e ainda tirou o dinheiro da empresa mas nunca disse onde e com quem ele o utilizou e era realmente uma grande quantia.
   O aluguel do apartamento estava atrasado, os móveis não foram pagos o fiador ligava e ofendia Carmem, claro era ela a responsável por tudo aquilo.
Tomou então a decisão de pedir a Hiroshi que fosse embora e Isabel sua irmã o levou para sua casa, onde ele a ajudava a fazer bombons, coxinhas , mas ainda não era o suficiente.
 Era um homem inteligente , prestou um concurso público e  passou começando a trabalhar na carceragem do Carandirú, onde os presos eram violentos e ele não teve estrutura para ficar naquele local, já se encontrava muito debilitado.
  Resolveu ir embora para a casa de seus pais, no interior, onde eles cultivavam alface e vendiam em São Paulo, prometendo enviar alimentos e dinheiro às crianças, pois sozinha Carmem não conseguiria pagar os empréstimos que fez para ajudá-lo e ainda ajudar aos pais dela que também não eram ricos e a ajuda que podiam oferecer não era a financeira.
   Passaram-se alguns meses, dois ou três talvez e Hiroshi não deu mais sinal de vida , deixando tudo na responsabilidade de Carmem que resolveu ir até lá em busca do socorro de pai para as crianças , buscar pelo menos alimentos para os pequenos.
   Ela passou então um dos piores momentos de sua vida, pois a família de Hirohi reuniu-se, trancou a porta a chaves e exigiu dela todas as explicações, sobre tudo, separação, falta de tudo e uma de suas irmãs tentava humilhá-la dizendo:
_  Seus filhos não têm o que comer, põe na FEBEM , (hoje Fundação Casa), lá é o lugar deles.
Carmem ouviu tudo em silêncio, enquanto o irmão mais velho de Hiroshi revirava tudo para encontrar a chave do carro, o qual tinha a intenção de tirar dela, mas por alguma obra do destino, ela  ao chegar guardou-a em local muito seguro.
   Até acalmarem-se os ânimos houve um bom tempo e já pela madrugada, com a casa às escuras, Carmem colocou as crianças no carro e sem pestanejar foi embora daquele lugar para nunca mais voltar.
   Retornou e bola pra frente, agora sim livrara-se de Hiroshi de uma vez por todas, trabalhava muito mas amava muito ,Yuri como sempre estava junto dela , mas alguma coisa havia mudado, algo muito sutil , quase imperceptível, mas Carmem que também estava esgotada achou que ele estivesse diferente por haver ficado magoado, afinal ela o havia deixado ainda que por pouquíssimos dias e do ponto de vista dela, por uma causa nobilíssima, seus filhos, pois os mesmos estavam acima de qualquer coisa nessa vida.
  Continuaram trabalhando , saindo, viajando, e sempre que possível gostavam de estar na Praia de Boracéia, amavam aquele lugar, pensaram até em comprar um terreno por ali, chegaram até a procurá-lo, mas não concretizaram o negócio.
   Faziam amor,... e de novo... e de novo... e de novo... e a cada vez era melhor e se sentiam ainda mais apaixonados.
   E os anos foram passando, já estavam no quinto ano juntos , quando a irmã caçula de Carmem resolveu casar-se , seu pai que andava com as finanças muito fracas, não quis deixar de fazer a festa de casamento de sua filha mais nova e foi trabalhar para poder oferecer o melhor nesse dia à sua família (irmãs, irmãos, sobrinhos, cunhados) , isso era na verdade praxe , e lá se foi ,ser o caseiro de um lindo sítio em Arujá e por ser Policial o dono do sítio deu-lhe a preferência pois também ele era Coronel Militar.
   Ficar sem seu pai em casa era desconfortável, ele fazia muita falta.
  Carmem, Yuri, as crianças, sua mãe, sua irmã e o noivo e a família de Yuri iam sempre àquele lugar maravilhoso visitá-lo.
   Marcada a data do casamento o tempo passou muito rapidamente e chegou então o grande dia, Carmem como sempre trabalhou muito para organizar tudo, e deixar absolutamente impecável para receber os convidados e Yuri além de ajudar muito ainda tomava conta das crianças.
 Foram todos à cerimônia e tudo transcorreu maravilhosamente, a família de Yuri também esteve presente nesse dia e estando Carmem com a casa cheia de convidados Yuri foi leva-los  após a festa, levando o seu carro ,haja visto não poder acompanhá-lo naquele momento, mas estranhou o fato dele não ter retornado naquela noite, na verdade ele nunca a havia deixado só em nenhuma ocasião e ela sentiu uma pontinha de ciúme, porém, não tinha tempo para ficar pensando naquilo  o dever a chamava.
Acabou a festa, o dia seguinte tudo por fazer, até que Yuri apareceu e a paz voltou a reinar no coração de Carmem.
   Era uma mulher que mesmo em meio a tantas controvérsias jamais perdia a fé e o seu sorriso, e sempre tinha uma palavra de conforto para alguém que dela precisasse.  Trabalhou arduamente, namorou com a mesma intensidade, até que a família de Carmem que tinha um outro imóvel em local um pouco distante ,no Munícipio de Guarulhos , resolveu mudar-se alugar o imóvel em que viviam em bairro nobre da zona norte de São Paulo, para que seu pai pudesse refazer-se financeiramente e parar de trabalhar.
   Mais um transtorno, mudar significava deixar Yuri de certa forma mas nem era tão longe assim, Carmem teria que vir trabalhar em São Paulo todos os dias e com certeza eles dariam um jeito na situação.
   Ela não se deu conta , mas desta vez Yuri não pediu que ela não fosse .
 Em um dos últimos dias antes que ela se mudasse, um amigo dele emprestou-lhe a chave de seu apartamento na praia e foram passar o fim de semana, foram na sexta à noite e no sábado pela manhã chegou um casal de amigos dele, gente nova, Carmem não conhecia, e também seus dois irmãos mais novos.
  Tudo bem, ela gostava mesmo de estar com pessoas e todos eram muito jovens.
   Yuri, radiante vestiu-se para ir à praia, tinha uma pele morena encantadora e estreou uma sunga branca que o deixou parecendo um deus egípcio.
   Saindo para a praia que ficava em frente ao prédio, resolveram passear e Yuri disse à Carmem: vamos dar uma volta e você fica, voltamos logo, toma um pouco de sol, descansa...
   Ela não entendeu nada, mas não queria discutir na frente de estranhos. Yuri saiu aproximadamente nove horas da manhã, e retornaram por volta das dezessete horas.
   Carmem sentiu-se a mais infeliz das mulheres, sentiu ciúme, solidão, bebeu, quis morrer, olhando o mar teve vontade de entrar e não mais retornar, chorou muito, o dia todo e percebeu naquele momento que havia perdido Yuri.
   Avistou-os vindo ao longe, um grupo de jovens , rindo, brincando, sem problemas sem nada que os impedisse de ser feliz.
    Carmem nada disse, entrou tomou seu banho arrumou-se, e era uma bela mulher ainda, estava nessa época com trinta anos e Yuri encontrava-se com vinte e três , arrumaram o apartamento e foram embora.
   Dali em diante a relação perdeu a essência, e chegou o dia em que Carmem teve que mudar-se, agora sem o carro que era de Hiroshi e teve que ser devolvido à financeira, mas Yuri ajudou a fazer a mudança, foi  até o local e aproveitando o carreto que voltaria a São Paulo também retornou.
   Nunca mais Yuri esteve naquele lugar.
  Passaram-se alguns dias e Carmem desesperada de saudade esteve em São Paulo e procurou por ele, como sempre foi muito bem recebida pela família, e nesse dia ele chegou tarde, beijou-a, e adormeceram no tapete da sala dos pais de Yuri.
  Com promessas de estarem juntos novamente, o que não ocorreu, haviam mesmo terminado e sem palavras o que é pior, e Carmem estava inconformada, procurou-o ainda umas duas vezes e na última delas, ao acordar sozinha (Yuri já havia saído para o trabalho) no meio da sala daquela família, sentiu-se ridícula, um verme rastejante, e saiu dali quase correndo, e nunca mais voltou.
   O que ela sentiu, o que passou, só ela e Deus é que sabem.
   A família de Carmem já recomposta, retornou à São Paulo e ela continuou sua vida ,ou que lhe restou de vida ,tentando superar a perda do seu  amor e só voltou a saber dele  no dia de seu casamento, com uma garota bem mais nova que ela ,sem problemas financeiros , e que viria a ser a mãe de seu filho, mas ainda hoje paira a dúvida no coração de Carmem , depois de viver esse amor tão intensamente , conseguiria alguém chegar ao coração de Yuri?
   O coração dela se fechou, ela conheceu outras pessoas, casou-se em segundas núpcias, mas existe bem lá no cantinho dele o lugar reservado ao único homem que amou em toda a sua vida.

   Porém esta é uma história inacabada e talvez um dia, “a vida ainda pague essa promessa.”

   E ainda hoje, tantos anos depois o coração ainda estremece ao ouvir a voz do homem amado, as palavras fogem, Carmem  se sente apaixonada como no primeiro momento em que se deparou com o homem que seria, acredita ela, o seu amor eterno e canta com toda a  força da sua alma na esperança de que ele de alguma forma a ouça.

"Meu coração, sem direção...
voando só por voar.
Sem saber onde chegar, sonhando em te encontrar .
E as estrelas... que hoje eu descobri no seu olhar.   As estrelas vão me guiar...
Se eu não te amasse tanto assim..."   
   Assim , decorridos tantos anos , a partir daquele momento de perda profunda , perda dos meus sonhos, da minha credulidade , da minha boa fé ... sinto a fênix já refeita,com garras novas e afiadas , renascida da sua dor , tentando alçar vôo em direção ao seu sonho em algum momento destruído mas jamais esquecido ou renegado.
   Quando se sonha verdadeiramente o sonho torna-se realidade , ainda que apenas dentro de nós .
   E assim, o tempo passa e entre todos os chamados e afazeres dos quais a vida nos encarrega, o que nos move na verdade são as nossas lembranças.
  Lembranças dos amigos que tivemos, dos trabalhos que realizamos, dos locais que frequentamos, daqueles que enxugaram nossas lagrimas e riram nossos risos, daqueles que nos aconselharam, acreditando estarem fazendo o melhor por nós, lembrança também daqueles que em razão da nossa insanidade crucificamos, magoamos ,ignoramos e a quem hoje depois de muito sofrimento, aprendizado dolorido ,já temos condição de nos ajoelhar mesmo que em espírito e pedir perdão.
   Perdão pela incoerência , perdão por não termos conseguido conciliar, separar , organizar os sentimentos ,por serem os mesmos tão antagônicos ... tão ambivalentes.
    Perdão, por sermos tão humanos ,tão fracos que preocupados com nossa própria dor , causamos e não percebemos a dor do outro.
    Mas nada disso... nada disso... destrói um sentimento quando verdadeiro , cometemos inúmeros erros, erros crassos , absurdos não nos damos conta, ou nos damos conta sim... mas só o que importa é o nosso amor, o amor que sentimos, o amor que queremos e lutamos com unhas e dentes para conseguir e defender.
   Apesar disso, quem nos amava ,continua a nos amar independente da nossa sandice.  A vida torna-se menos brilhante, mas ainda assim intensa... e o dia a dia , a correria ,o vai vem ... e no meio desse turbilhão ,existe dentro de nós e no cantinho da nossa mente aquele espaço preenchido pelo nosso amor... e vamos vivendo a vida... e a cada vitória do outro o nosso ser rejubila... 

    Sabemos-o bem , vivendo o seu melhor ,da forma escolhida e não podemos ser egoístas a ponto de querermos ser dois ,estarmos juntos , presentes ... cada qual é um universo ,e uma individualidade e preservam-se os sentimentos que nos induzem a ser mais... a conquistar mais...  a ser mesmo merecedor de si e do outro.
By
Conceição Tereniak
  

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